Uma das maiores recompensas que
se retira da leitura dos grandes romances é conhecer, de forma bem sucinta e
esclarecedora, certos aspectos essenciais da cultura e psicologia de um
determinado povo. Os bons autores sabem colher o que há de mais interessante e
característico na existência da sociedade que escolhem para retratar e
condensam este conhecimento na estória de seus personagens, nos acontecimentos
em que se envolvem, na descrição de seu mundo. Além disso, alguns países
parecem que tiveram a ventura de ter suas características mais básicas melhor
apreendidas por autores estrangeiros do que pelos de seu próprio povo. Os
Estados Unidos parece ser o caso mais marcante deste tipo. Quando se analisa os
princípios básicos da psicologia da grande nação norte americana o primeiro
autor que surge em nossa mente é Alexis de Tocqueville, um francês do século
dezenove que escreveu um influente livro chamado "A Democracia na
América." Ainda, de acordo com a Biblioteca do Congresso Americano, o
livro de maior influência nos Estados Unidos é a Bíblia, a qual foi escrita, em
sua maior parte, por autores judeus. De acordo com a mesma fonte, o segundo
livro mais influente é "Atlas Shrugged" (A Revolta de Atlas, no
Brasil) da filósofa Ayn Rand, uma cidadã da União Soviética.
A Revolta de Atlas compõe-se
de três alentados volumes. No primeiro, vários personagens se destacam,
inclusive um que aparece apenas como um mote (Quem é John Galt?) Mas, sem
dúvida, o principal deles é do sexo feminino e chama-se Dagny Taggart. Ela é a
herdeira da Taggart Transcontinental, a maior empresa ferroviária dos Estados
Unidos, na época. Dagny é uma defensora ferrenha do capitalismo mais puro,
entendido como um sistema onde os homens capazes, dedicados e superdotados são
deixados livres para produzir e trocar os seus produtos através do dinheiro.
Tal ação, conforme acredita a autora do livro, gera o maior nível de
prosperidade para todas as pessoas na sociedade em que vivem. O maior obstáculo
a fim de que isto aconteça é o Estado, quando se envolve nas questões
econômicas tentando controlar a produção e distribuir o que é produzido pelos
indivíduos mais capazes. Tal Estado, naturalmente, é controlado por uma classe
de burocratas e pensadores aparentemente bem-intencionados, idealistas que
pensam em ajudar a humanidade administrando a produção e distribuindo uma parte
da riqueza produzida pelos super-capitalistas, todavia sem deixar de atender aos
seus próprios interesses. Os burocratas, conforme pensa a autora do livro, são
aliados dos produtores menos capazes e invejosos que os manipulam com o fim de
se apossarem de uma parte substancial dos resultados obtidos pelos homens
verdadeiramente talentosos e empreendedores, aqueles que criam novas
tecnologias e também enriquecem graças a sua genialidade e empenho em
produzi-las e vendê-las. As pessoas comuns são, via de regra, apresentadas como
apoiadoras dos capitalistas aproveitadores e dos burocratas demagogos, pois
estes lhes satisfazem o desejo de obterem coisas que não fizeram por merecer,
adjudicando-lhes uma parte da produção além do que os capitalistas concordariam
em pagar-lhes num sistema de livre competição. Não há como não concordar
veementemente com Ayn Rand quando ela descreve a classe dos aproveitadores,
capitalistas invejosos e incapazes, assim como os demagogos, e o sistema que
favorece o seu domínio sobre a sociedade. Tal descrição torna-se mais
contundente à medida que o livro se encaminha para os capítulos finais.
Um dos pontos fracos do livro,
no primeiro volume e até a metade do segundo, são os longos diálogos
detalhistas e um tanto formais, repletos de frases sugestivas que terminam por
reticências. Quão grande é a distância existente entre a monotonia mecânica
destas conversas e a brilhante revelação de um caráter na simples palavra dita
pelo farmacêutico Homais, no romance Mme. Bovary, de Flaubert, quando, ao
oferecer o açúcar para o ilustre visitante, resolve mostrar-se profundo e
erudito: "Saccharum?"! A partir da metade do segundo volume a
narrativa e os diálogos adquirem uma espontaneidade e profundidade maiores.
Cenas como a do desastre do trem no túnel chegam a atingir um alto nível de
suspense, devido a manipulação brilhante das expectativas. Havendo lembrado de Mme.
Bovary, não se pode deixar de notar a semelhança essencial de caráter entre
estas duas personagens femininas. A francesa do século dezenove não teve a
sorte de nascer, como a americana de um século posterior, rica e poderosa; logo,
não tem que lutar com os mesmos problemas. Ambas, porém, só estão interessadas
em fazer o que desejam, e não querem sacrificar os seus desejos por nada nem
por ninguém. Desprezam as convenções. Desprezam aqueles que lhes dizem que
estão erradas. O verdadeiro fim do ser humano, assim elas o entendem, é buscar a
realização de seus desejos. Têm seu próprio código de valores, difícil de
entender porquanto parece não levar em consideração o interesse dos outros.
Assim como Hank Rearden, outro personagem no romance de Rand, não liga para o
que pensa ou sente sua esposa (não se consegue apreender claramente porque ele
a despreza), Ema Bovary também não se preocupa com os sentimentos de seu
marido. Entretanto, Flaubert nos mostra a verdadeira condição de sua personagem
e o fim lógico de sua vida, ao passo que Rand envolve a sua numa aura de
inexpugnabilidade. Os caracteres principais de "A Revolta de Atlas",
com seu código muito pessoal de valores, não são humanos normais: estão sempre
certos! Parece que este é um dos principais defeitos da obra, senão o
principal. Que tipo de leitor lê com concordância irrestrita, do início ao fim,
um livro que se pretende realista e no qual os personagens principais nunca
deixam de estarem com a razão? Jamais lhes cabe qualquer repreensão, a não ser
as que parecem ser dirigidas a um excesso de bom caráter. Todas as pessoas que
se lhes opõem acabam revelando um comportamento que é descrito como
extremamente mesquinho e repreensível. Esta característica da obra retira-lhe
completamente a possibilidade de tornar-se uma obra clássica no sentido
tradicional do termo. Que autor consagrado pelo tempo teria cometido tal
deslize? Até mesmo as maiores personagens bíblicas, sem contar o próprio Jesus
Cristo, eram humanos cheios de falhas, contra as quais tinham de lutar
constantemente. Na verdade, esta característica é uma das chaves para o
entendimento do livro. Seu enredo trata, entre outras coisas, do suposto lugar
dos heróis na sociedade: Hank Rearden, Dagny Taggart, Francisco D'Anconia, John
Galt e os que os apoiam, são pessoas muito além de excepcionais. Na Bíblia,
somente o próprio Cristo lhes era comparável em termos de irrepreensibilidade.
Nunca existiram muitos seres humanos como eles: São cientistas, inventores de
altíssimo nível, filósofos, empreendedores, inovadores, criadores, mártires,
todas estas qualidades existindo em cada um deles individualmente; são todos da
linhagem de Prometeu, os verdadeiros salvadores e condutores da humanidade, com
seu fogo tecnológico. O livro trata apenas deles e de seus direitos. O resto da
humanidade é composto de pessoas comuns que dependem deles para trabalhar e
viver, e daquele que desejam ter os mesmos privilégios que eles têm sem
merecê-los, os parasitas: pessoas comuns que reivindicam direitos naturais,
políticos que as apoiam, burocratas ambiciosos e acadêmicos que professam uma
filosofia relativista.
Ayn Rand também deixa
entrever, no livro, uma curiosa teoria do amor e do sexo. Segundo ela, os
homens excepcionais só podem satisfazer-se plenamente com uma mulher também
excepcional, que colocaria em relevo suas próprias qualidades. A suprema
conquista de um grande empreendedor! Neste caso, o papel que cabe à mulher é o
da heroína que se deixa usar. Pena que, no livro, o papel de heroína só cabe a
uma mulher, a própria Dagny Taggart. Deste modo, alguns heróis devem permanecer
solteiros. Também não são poucas as referências aos instintos assassinos dos
heróis do livro, dirigidos, na intenção ao menos, contra aqueles que desafiam
sua visão existencial, sua necessidade de satisfazerem os próprios desejos
antes de qualquer outra consideração. Em vários momentos o instinto assassino
dos personagens principais aflora contra aqueles que eles pensam que desejam
obter qualquer benefício do fruto de seus esforços. Um trem inteiro cheio de
passageiros é sacrificado, mas as pessoas que tem de executar a ordem são
justificadas de certa forma, pois pensam como os heróis do livro, são
empreendedores desiludidos com o rumo que a humanidade está tomando, contrário
a liberdade irrestrita do instinto empresarial, humanidade que pensa existirem
direitos naturais além do direito de trabalhar e negociar, coisa com a qual a
autora não concorda absolutamente.
Ayn Rand, na verdade, defende
uma forma de totalitarismo que sempre existiu: a lei do mais capaz, que lhe
permite apossar-se de tudo o que puder conseguir com sua capacidade, até mesmo
do mundo inteiro, todavia, com uma ressalva: tudo deve ser feito com
honestidade e dentro da lei. Ela não questiona suas premissas, a principal das
quais nos diz que o livre empreendedorismo irrestrito, com a exclusão de
qualquer forma de piedade e ajuda humanitária, só acumula benefícios para a
humanidade. O trem e as pessoas sacrificadas, todas elas contaminadas pelo
pensamento de que tem direito natural a uma fatia do bolo que os empreendedores
cozeram, representam a sociedade que a autora não aceita e que pode ser
exterminada sem causar perturbações na superfície da consciência. Em outra cena
um homem é apresentado de forma bem positiva como vingador da classe dos
produtores ao dar um soco na boca de uma garotinha e quebrar-lhe todos os
dentes. A culpa da menina: desejou que o Estado lhe pagasse um aparelho para os
dentes, e era feia e má. No final da história a própria Dagni torna-se uma
assassina ao matar um funcionário que tenta impedi-la de entrar em uma
instalação governamental. O livro é todo ele um libelo contra a piedade. Numa tal
sociedade, a qual estivesse funcionando como a autora imagina que deveria ser,
ficamos nos perguntando o que aconteceria com as crianças e os velhos, os
doentes e os fracos e os azarados de todos as espécies. Em nossa mente surgem
perguntas do tipo: Em que idade as crianças deveriam ser deserdadas pelos pais?
Numa sociedade onde a palavra “dar” representa um tabu horroroso, e onde toda
piedade é execrada, que direito tiveram D’anconia e Dagny de herdarem as
empresas de seus progenitores? Até que idade seus pais os deveriam sustentaram?
Teriam eles o direito, a partir do momento em que estavam aptos para começaram
a trabalhar, de pedir alguma ajuda a eles, se houvesse necessidade? Ou deveriam
receber um sonoro “Não!” em resposta?
Mas como funciona, na prática,
o sistema econômico que Ayn Rand advoga? Imaginemos que no vale de Galt, já
mais densamente povoado por pessoas não tão excepcionais quanto seus habitantes
originais, um homem empreendedor e capaz estabelece uma fábrica de
processamento de abacaxis, a fim de fabricar conservas desta fruta. Uma vez que
existe certa procura premente por emprego, já que ali ninguém dá nada para
ninguém, as pessoas aceitam trabalhar na fábrica pelo salário que lhes é
oferecido, sendo este, naturalmente, o mais baixo que elas podem aceitar
(abaixo do qual não trabalhariam de maneira nenhuma), de acordo com as regras
deste tipo de capitalismo. Obviamente, não condiz com o tipo de sistema
econômico imaginado por Rand pagar um centavo acima do mínimo que as pessoas se
disporiam a aceitar, pois esta seria uma atitude piedosa e desnecessária, e a
autora do livro abomina a piedade. Tudo deve funcionar, de acordo com ela,
segundo as regras estritas do “capitalismo laissez-faire”. Para a autora do livro
este seria o cenário justo por excelência, com as pessoas ganhando o salário
mais reduzido possível e os lucros do empreendedor elevados ao máximo. Ainda
assim, os trabalhadores da fábrica de conservas deveriam ser agradecidos ao
homem que lhes dera a oportunidade de terem trabalho e salário. Mas eis que
surge no cenário um outro capitalista que deseja entrar no negócio de produção
de conserva de abacaxi. Ele vê que não existem trabalhadores disponíveis, pois
não há desemprego no vale. Como a margem de lucro é muito alta no negócio,
devido aos salários mínimos que são pagos, ele oferece cinquenta por cento a
mais para os que quiserem abandonar o emprego atual e virem trabalhar na sua
fábrica. O primeiro capitalista, percebendo que vai perder todos os seus
empregados, aumenta-lhes os salários em cinquenta e cinco por cento. O outro
segue-lhe o exemplo. Por fim, todos estão empregados com um salário cinquenta e
cinco por cento maior. Como a produção de abacaxi em conserva aumentou, e
também devido à concorrência entre os produtores, os consumidores acabam
obtendo este produto por um preço menor. Para Rand, se jamais surgisse um
segundo capitalista empreendedor para entrar no ramo de negócios do primeiro, a
situação que se perpetuaria com os trabalhadores recebendo um salário irrisório
e o dono da fábrica auferindo lucros muito altos seria perfeitamente aceitável.
Uma vez que a autora trabalha somente com axiomas do que deve ser o capitalismo
puro, os trabalhadores deveriam aguardar pacientemente, recebendo salários bem menores
do que aqueles que o primeiro empregador poderia pagar, até que surgisse um
novo empreendedor para entrar no mesmo ramo de negócio e elevar-lhes os
salários. Se os trabalhadores de todas as fábricas do vale resolvessem se unir
e fizessem uma poupança, e usassem este recurso para manterem numa greve
prolongada os trabalhadores da fábrica que estivesse pagando os menores salários
até que eles conseguissem um aumento razoável (o máximo que o empregador
aceitasse pagar), a autora aceitaria tal resultado como justo? Certamente que
não, pois, para Rand, todos os empreendedores são homens justos e as regras do
capitalismo irrestrito só devem funcionar a seu favor. No caso acima descrito
os trabalhadores estariam, na verdade, agindo em causa própria da mesma forma
como agem os capitalistas quando são louvados por absterem-se do consumo
imediato de uma parte de seus recursos para aplicarem-no em seus negócios. Esta
é uma das características que distingue os capitalistas e os torna dignos de
louvor na mitologia da literatura a seu respeito: a frugalidade. Não podem os
trabalhadores serem apreciados pelo mesmo motivo? Não podem eles investir o
fruto de sua frugalidade em si mesmos? Não deveriam ser também louvados por
usarem a sua inteligência tentando encontrar meios honestos de aumentar a
própria renda?
O maior erro do marxismo é
manter de forma axiomática que os capitalistas são pessoas ruins e os
trabalhadores são boas pessoas; da mesma forma e ao contrário, Rand parece
supor que os primeiros são bons e os últimos são, geralmente, maus. Como se
houvesse um fado a determinar que as pessoas, por serem boas ou más, iriam
pertencer a esta ou àquela classe. Tais doutrinas, as quais atribuem as supostas
qualidades de uma determinada classe social intrinsecamente às próprias pessoas
que nela estão incluídas, são as mais perniciosas que sempre existiram,
estimulando o ódio entre os seres humanos. Um proletário que se torna
capitalista passa a ser uma pessoa má? De um outro ponto de vista, o mesmo
acontece com um empreendedor que empobrece? Quem acredita nisso está apenas
justificando o próprio ódio contra a humanidade. Não é isto o que diz a
constituição dos Estados Unidos da América ao afirmar que todos os homens
nascem iguais, bons e maus na mesma medida, independentemente da classe à qual
pertencem.
Trata-se isto, na verdade, de
um conto de fadas, de uma utopia sonhadora, uma verdadeira paródia do
cristianismo que a autora tanto menospreza e contra o qual tanto se ressente. O
capítulo onde é narrada a queda do avião no vale encantado onde John Galt mantém
a sua comunidade de super-cérebros assemelha-se, estranhamente, a uma experiência
de vida após a morte e aquilo que os que acreditam na vida após a morte pensam
ser o outro mundo: um paraíso para aqueles que foram boas pessoas durante sua
existência, com todos os problemas solucionados, com tudo funcionando
maravilhosamente e as pessoas e a natureza, perfeitas, vivendo em comunhão
abençoada. A entrada neste novo mundo é como que uma morte e renascimento
simbólicos, onde o herói do livro aparece para a heroína como uma espécie de
semideus, sendo descrito quase como uma consciência pura. A narrativa da volta
de Dagny ao mundo normal reproduz com perfeição a sensação daquilo que os
cristãos chamam de viver pela fé. A heroína está com os olhos vendados sendo
conduzida num avião por Galt, sem poder vê-lo e nem mesmo ouvi-lo. Deve
permanecer tranquila, confiando que está nas mãos de alguém que vai levá-la com
segurança ao seu destino. É assim mesmo que os cristãos devem viver com relação
a Deus e ao seu filho, Jesus Cristo. A única frase que o piloto diz para Dagny
tranquiliza-a a respeito de sua onipresença: “Sempre estarei aqui”. Também a
onisciência divina aparece entre os atributos de John Galt quando Dagny,
sozinha em seu apartamento na cidade de Nova York, manifesta certeza absoluta
de estar sendo por ele observada. Ela começa a divagar sobre o tipo de invento
que ele deve estar utilizando para poder enxergá-la. Quase ao final do livro,
Galt passa por uma experiência de tortura na qual chega próximo da morte,
ressurgindo dela como um verdadeiro Anticristo que, assim como o verdadeiro
Cristo, sacrifica sua vida para salvar a humanidade. Neste ponto, fica claro o
que o livro pretende: colocar o homem, com sua capacidade inventiva, no lugar
do próprio Deus, apropriando-se de todas as suas qualidades e atributos através
do desenvolvimento da técnica e do domínio da matéria. Alguns homens, como
Galt, serão deuses; outros, como Dagny, adoradores. Deus mesmo está
completamente ausente do livro, apesar de haver algumas pistas a seu respeito,
como no ponto em que a autora se refere com desprezo àquele que manda dar a
César o que é de César — coisa com a qual ela não concorda, absolutamente. Obviamente,
uma vez que o que é de César é uma parte do dinheiro ganho pelos heróis do
livro o qual é entregue para o governo na forma de impostos (taxação que vai de
encontro a filosofia do livro), e a autora também adora o dinheiro, como se vê
no episódio do vale de Galt, onde o obelisco do cifrão dourado domina a
paisagem, como uma representação de Mamom. Dagny não enxerga que se a figura de
César está inscrita no denário romano a figura de Deus está, igualmente,
inscrita em nós mesmos, pois fomos criados a imagem e semelhança de Deus. “Daí
a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”.
Ainda, o mundo onde a estória
se passa é completamente dominado por figuras masculinas, como se vê no jantar
que é oferecido a Dagny no vale de Galt. O capítulo não deveria chamar-se
“Atlântida”, e sim “Olimpo”. A autora só tem em mente os super-empreendedores,
uma classe de seres que reúnem em si mesmos todas as qualidades requeridas de
um ser humano a fim de tornar-se extremamente bem-sucedido. São, eles, homens
capazes de inventarem do nada as máquinas e os materiais mais maravilhosos,
aptos a solucionarem problemas complexos com apenas alguns rabiscos feitos em
qualquer pedaço de papel. Além disso, possuem ou conseguem se apropriar dos
recursos para colocarem suas ideias em prática eles mesmos — sendo também
dotados de um senso empresarial perfeito. Apesar disso, Ayn Rand tem, na
verdade, uma alma marxista. O homem que ela louva é o mesmo que é enaltecido
pela literatura comunista: desprovido de crença em um ser que seja superior a
si mesmo, criador ele mesmo de seu destino, dominador e transformador da matéria
para atender a todas as suas necessidades e cheio de esperanças num futuro onde
será senhor absoluto do mundo material através do avanço da ciência. Onde estão
os empresários que professam sinceramente a ética do cristianismo e do judaísmo,
ou que foram de alguma maneira influenciados por elas, os quais construíram a
grandeza da nação norte americana, exemplo máximo do tipo de sociedade que a
autora procura enaltecer? No livro, quando os grandes empresários falam de si
mesmos sua voz soa incoerente cada vez que se descrevem como materialistas e
ateus consumados. Nada mais fantasioso! Ayn Rand ignora ou subverte
completamente a realidade descrita no livro de Max Weber, “A Ética Protestante
e o Espírito do Capitalismo”, e a realidade da formação dos Estados Unidos da
América. Alguns dos “Founding Fathers” poderiam ser outras coisas que não
cristãos - maçons ou rosacruzes, por exemplo - mas não eram, na sua grande
maioria, pessoas irreligiosas ou alheias e contrárias a ética do cristianismo,
a qual a autora procura minar completamente. Estranho é que tantos americanos
ainda acreditem em suas ideias e sejam tão influenciados por elas. Na verdade,
para os inimigos do cristianismo é indiferente que a sociedade seja capitalista
ou comunista, assim como também o é para os verdadeiros cristãos. É bem
provável que o capitalismo seja intrinsecamente superior ao comunismo como
sistema de produção e distribuição, todavia o que importa, verdadeiramente, é
se a sociedade em questão é justa ou injusta. Os inimigos do cristianismo
almejam implantar uma sociedade completamente sem Deus, baseada no ateísmo e no
culto ao homem e suas possibilidades. Para este fim, tanto faz inculcar nas
mentes dos homens o desejo por uma sociedade comunista e descrente ou por uma
outra capitalista e descrente. O materialismo é a crença maior de qualquer um
dos dois tipos. O segundo é o escolhido por Ayn Rand como sendo o que ela
gostaria de ver implantado.
Um hino de louvor às máquinas
(e aos seus criadores) perpassa as páginas do livro, porém em momento algum a
autora parece se preocupar em encontrar, para dar-lhe os louvores merecidos, o
autor da máquina mais maravilhosa de todas, que ela não cansa de contemplar na
figura de seus heróis: o corpo humano. D’Anconia, Rearden e Galt foram
abençoados com corpos físicos tão perfeitos como as máquinas que inventam ou
controlam. E todos os três se apaixonam e amam profundamente a heroína do
livro. Na verdade, como a própria Ayn Rand disse uma vez, trata-se apenas de
uma estória de amor. E das mais fantasiosas. A prova mais contundente que o
livro é uma fábula é a reprodução de um paradigma mitológico não plenamente
identificado que se reproduz na literatura de todas as épocas: os trabalhadores
comuns que nunca aparecem no livro, os milhões de seres humanos que existem
apenas para fazerem funcionar as fábricas e minas dos D’anconia e Rearden, para
manejarem suas máquinas e consumirem seus produtos. Eles estão representados na
literatura mitológica de todas as épocas pelos anões de Papai Noel, trabalhando
alegremente em sua fábrica de brinquedos (deve ser uma fábrica enorme, a fim de
atender a toda a humanidade); pelos anões da Branca de Neve, indo felizes para
o trabalho, alimentando-a e provavelmente também ao seu príncipe, mais tarde;
pelos anões de Willie Wonka trabalhando e cantando em sua fábrica de
chocolate... Esta é a parábola que se repete: uma infinidade de trabalhadores
anões esforçando-se para realizar os sonhos de seus patrões de estatura normal
(ou um pouco mais do que o normal, no caso de Papai Noel).
Ayn Rand revela algumas das
premissas principais de sua filosofia no episódio em que Cherryl, a esposa de
James Taggart, vai procurar a cunhada em seu apartamento. Ela começara a ver
que seu marido não é tão perfeito como imaginava e passa a desprezá-lo
completamente, no que é incentivada por Dagny com o mesmo desprezo irracional e
absoluto (dos que se julgam superiores moralmente, acima do bem e do mal) que
Hank Rearden manifesta por sua esposa. Dagny expõe seus princípios em algumas
poucas frases lapidares, afirmando, por exemplo, que aqueles que sentem
comiseração pela culpa não sentem nenhuma pela inocência. Defende-se da
acusação de insensibilidade afirmando que sempre que alguém é apodado de
insensível tal afirmação prova que este alguém é uma pessoa justa. Os justos
não sentem piedade. Esta é a maneira típica de pensar dos que se julgam quase
perfeitos, aptos a condenar seus semelhantes a algum tipo de inferno
administrado por eles mesmos. Quem errar estará condenado, sem comiseração.
Apenas os inocentes, os que nunca são culpados porque nunca erram (como Dagny e
seus amigos) merecem piedade, por serem vítimas. A tendenciosidade da autora é
claramente revelada no episódio do adultério de James Taggart com a esposa de
Rearden, que é apresentado de forma tão asquerosa quanto o deste último com a
irmã do primeiro aparece envolto numa aura de sublimidade. Segundo a autora,
certos adultérios estão, de antemão, justificados. Mais adiante, a heroína
revela a única norma que obedece em sua vida, a de não colocar nada acima do
veredicto de sua própria mente. Isto é o mesmo que declarar, implicitamente, a
perfeição absoluta de uma mente humana particular! Porém, como confiaríamos
absolutamente em um órgão que não fosse perfeito para os fins de conhecimento da
realidade? Em nenhum momento do livro Dagny se contradiz mais completamente.
Uma vez que ela é uma ateia convicta deve aceitar a teoria da evolução de
Darwin e, neste caso, como saber que a evolução da sua mente humana já está
completa para confiar nela tão exclusivamente? Contudo ela acredita que, sendo
um ser que faz parte de uma longa cadeia evolutiva, já atingiu a perfeição.
Também no longo discurso de Galt à nação a mente humana individual é
apresentada como o valor supremo que se deve cultuar. Ele tenta convencer as
pessoas que não devem aceitar o veredicto de nenhuma outra mente além da sua
própria. Não se consegue apreender o significado deste conselho. Teria a mente
humana atingido um estágio de racionalidade tão extrema, na concepção da
autora, que não haveria mais necessidade da cooperação intelectual na busca da
verdade? Galt também afirma que o homem deve moldar sua mente a própria imagem
e semelhança do homem, seu ideal moral. Ayn Rand, que começou sua trajetória
intelectual influenciada por Nietzche, influência que ela mais tarde renegou,
na verdade nunca se libertou das ideias daquele filósofo, e o sistema que ela
nos apresenta como o mais perfeito é uma espécie de capitalismo com alma de
Anticristo.
O maior engano filosófico
cometido pela autora diz respeito à natureza do mal e da justiça. Segundo o que
ela acredita os maus, que também são incapazes, tentam enganar os bons
fazendo-os acreditar que eles é que são maus e desprovidos de piedade por suas
fraquezas. A falácia da autora principia com suas premissas, fazendo-nos crer
que todas as pessoas verdadeiramente criativas e capazes são também justas, e
os desprovidos de criatividade (ou que apenas simulam esta qualidade) e
incapazes são também injustos. Não existe um motivo ontológico para ser assim.
Muitas vezes, na história da humanidade, a idoneidade andou de mãos dadas com a
injustiça, sendo que pessoas simples também podem possuir um senso inato de
justiça. A verdadeira natureza do mal está no que uma pessoa acredita com
respeito a si própria, atribuindo-se um senso indevido de justiça. Os maus são
cheios de justiça própria. Por mais que pratiquem maldades contra os seus
semelhantes, movidos pela inveja e cobiça, sempre se auto justificam de alguma
maneira. Deleitam-se no auto-engano, parecendo acreditar que por serem tão
eficientes em convencerem a si próprios de sua retidão devem estar agindo
corretamente até mesmo quando praticam coisas erradas contra os outros. Não se
importam com a opinião e o sofrimento alheios, desde que consigam alcançar os
seus objetivos.
Ayn Rand esforça-se por
demonstrar que se as pessoas viverem de acordo com a sua filosofia tudo deverá
funcionar perfeitamente em suas vidas, no entanto torna-se óbvio que tal só
acontece para os personagens principais, e toda a construção da trama se
destina a realizar os sonhos mais dourados de Dagny Taggart. Em certo ponto, a
autora chega a um impasse: é quando a personagem principal deve se decidir por
qual dos heróis irá se apaixonar. Ela escolhe o mais importante de todos: o
próprio John Galt. Francisco D’Anconia, que a considera a mulher de sua vida,
apesar de demonstrar que pretende ficar com ela, tem de permanecer solteiro.
Estranhamente, apesar de todos os esforços da autora em conferir um tom de
grandiosidade ao arranjo final dos acontecimentos, fica claro que D’anconia
deve permanecer com um sentimento, o da resignação, que é totalmente contrário
àquilo que Ayn Rand vem apregoando por todo o livro. Para ser coerente com uma
filosofia de vida onde o egoísmo é a característica mais louvada e desejada,
ele não deveria abrir mão daquilo que realmente almejava, e que considerava
como sendo a coisa mais importante de sua existência, em favor de Galt. O mais
certo, neste caso, seria que praticasse em sua vida pessoal os mesmos princípios
de competição pura os quais norteiam o tipo de capitalismo apregoado por Rand
em sua obra. Deveria, sim, desejar que Dagny mudasse de ideia e passasse a desejá-lo
ao invés de desejar Galt; deveria esforçar-se para ser mais merecedor do amor
da heroína do que este, e, caso conseguisse realizar seu intento, menosprezar
os sentimentos feridos de seu rival tanto quanto este menosprezou os seus. Ou,
se não fosse bem-sucedido, pelo menos deveria admitir sua frustração — a qual
não precisaria durar para sempre. É assim que as coisas acontecem na vida real.
Em poucos momentos a atitude dos personagens principais se mostra mais
dissonante das premissas do livro do que neste episódio da renúncia de
D’Anconia, a não ser, talvez, no episódio semelhante em que Hank Rearden também
deve renunciar ao amor e razão de sua vida. A atitude resignada deste último
parece ainda mais patética, face ao tipo de filosofia de vida que o livro
apregoa. O leitor atento fica a conjeturar qual deveria ser a decisão de John
Galt, para quem Dagny era a realização mais almejada, se ela chegasse ao vale
casada com D’Anconia ou Rearden. Tornar-se-ia ele o herói da exaltação do eu
vivendo frustrado para sempre após ter realizado tudo para os outros? Acontece
que no livro de Rand a competição baseada na vontade pessoal, no egoísmo
abertamente admitido, no louvor dos mais competentes — ainda que realizada de
forma honesta — menospreza o fato de que em um tal sistema o equilíbrio se dá
pela consciência de que existem pessoas que ficam para trás, ao menos
temporariamente, e nem sempre por serem os mais incapazes. Pois uma vez que
existe competição é porque os recursos são escassos, e devem distribuir-se de
alguma forma entre os que deles necessitam. Porém, desde que o sistema
escolhido para esta distribuição seja um no qual não haja limites estabelecidos
para a quantidade de recursos que cada um poderá amealhar para si, alguns
indivíduos ficarão, por muito ou pouco tempo, sem o mínimo necessário para
sobreviverem. Sempre existirão aqueles que irão precisar de ajuda.
Acontece que no livro a autora
desenvolve a caricatura de um sistema capitalista viciado, onde o estado se
intromete cada vez mais na vida das pessoas tentando regular a produção e a
distribuição, justificando-se com argumentos falaciosos que enaltecem a
igualdade de oportunidades e a piedade com os fracos e os deserdados pelo
sistema. Tal descrição não leva em conta as forças que atuam em sentido oposto
num tal sistema, forças que não são desprovidas de poder, estando em primeiro lugar
dentre elas os próprios capitalistas. A verdade é que não existem muitos deles
que sejam tão puros livres empreendedores quanto os heróis do livro. É difícil
encontrar, na história do capitalismo, exemplos concretos de seres tão
virtuosos. A maioria absoluta dos empreendedores entende a verdadeira natureza
do sistema capitalista, sua incapacidade de proporcionar estabilidade aos que
dele participam, devido a ser um sistema de livre competição; sabe que os seus
competidores estão prontos a buscarem vantagens em alianças com os poderosos de
plantão e está inteiramente disposta a agir da mesma forma. Uma caricatura é um
exagero de certos traços característicos de um rosto ou de uma personalidade,
com a concomitante minimização de outros. É este o retrato do capitalista
virtuoso que Ayn Rand apresenta em sua obra. Exagera as capacidades científicas
e de empreendimento, como se elas não existissem, na maioria das vezes
separadas em indivíduos diferentes, e minimiza o pragmatismo dos empresários.
Feita a caricatura, é fácil para a autora investir contra aquilo que ela mais
odeia, ou seja, qualquer coisa que tenha como objetivo a igualdade de
oportunidades e a piedade para com os necessitados do sistema, valores que ela
identifica com o cristianismo.
Uma das grandes falácias do
argumento que perpassa a obra está em colocar no mesmo barco com os
capitalistas incapazes e invejosos, burocratas e pseudo intelectuais, a grande
massa de pessoas comuns, com raras e honrosas (do ponto de vista da autora)
exceções. O que faz justiça à realidade é admitir que sob os dois sistemas,
capitalismo puro ou estatal (este último na sua forma extrema sendo o comunismo),
o povo é explorado a fim de servir aos interesses de algumas classes
privilegiadas. Os burocratas, os demagogos e os ricos conseguem alcançar os
seus objetivos através do dinheiro ou da persuasão e educação superior. Mas ao
povo comum só é deixada a alternativa do voto, nas sociedades democráticas e
capitalistas. Como, porém, são os ricos e os bem-educados que conquistam a
oportunidade de disputarem os cargos na política, as pessoas desprovidas de
riqueza e diplomas ficam sem representação adequada, tornando-se facilmente
massa de manobra para as outras classes. Resta aos trabalhadores simples e
explorados a possibilidade de conquistarem melhores condições através da sua
união livre em sindicatos, com o fim de forçarem a classe patronal, através de
greves e persuasão, a lhes concederem aumentos salariais e melhores condições
de trabalho. A autora, porém, não concorda com esta possibilidade. Para ela,
somente a mão invisível do capitalismo é que deve distribuir o resultado da
produção no mundo. Entretanto, o livre capitalismo não é um sistema perfeito.
Sê-lo-á somente no dia em que o excedente de produção for tão grande que haja o
suficiente para que todas as pessoas na Terra tenham abundância de tudo o que
necessitam, inclusive tempo para aproveitarem a vida. Porém, quando tal dia
chegar, talvez os seguidores das ideias de Ayn Rand advoguem que todo excedente
deverá ser destruído, e que nada deverá ser entregue a não ser por um preço
justo, mesmo que os necessitados que não podem fazer nada não tenham com que
pagar.
José Cassais
Prezado José,
ResponderExcluirSeu estilo de escrita é agradável, claro e inteligente.
Mas é uma pena que tenha interpretado o livro da maneira como o descreveu. Cada um tem o direito de interpretar o que quer que seja de acordo com suas próprias convicções ou crenças. Concluí a leitura ontem, hoje lendo seu texto, para mim ficou muito óbvio que houve uma grande deturpação do que Ayn Rand realmente quis transmitir. Diversas passagens mencionadas por você, fora do contexto realmente transmitem a ideia do que você quis transmitir por alguma razão. Me fez lembrar os ateus que selecionam versículos biblicos fora do contexto para "provar" a inexistência de Deus. Se eu não tivesse lido o livro e não fosse um pouco racional eu certamente acreditaria no que escreveu.
Em momento algum o livro transmitiu alguma ideia que eu julgasse contraria ao proposito de Deus para o homem, muito pelo contrário, como você mesmo disse, os heróis do livro eram deificados, embora naturalmente haja fantasia (caso contrário seria noticiário, não um livro),é possível identificar claramente a correspondencia do livro com os fatos que vivemos hoje, os vilões são os mesmos do livro, é uma pena que nossa cultura não tenha permitido que existissem heróis como o do livro.
A dica para outros que passarem por aqui se aplica a livros, a visões politicas e religiosas e a qualquer outra coisa: Sejam racionais, não julguem sem conhecer, não acreditem em tudo que se le ou ouve, não anule a si próprio aceitando uma ideologia que não seja construída pela sua própria razão com base no conhecimento dos fatos, jamais se limite a "seguir" a manada. Tenha a liberdade de pensar, de ser você mesmo, seja você o único responsável pelo seu sucesso ou fracasso, lute por um mundo em que cada um determina seu destino de acordo com seu próprio esforço, seja você um empregado ou um empregador, tenha consciência de sua importância e faça seu melhor. Não tenha medo de crescer e prosperar, não é imoral ter mérito quando as conquistas foram obtidas dando valores e recebendo valores.
A hipótese construída sobre o Vale de Galt foi extremamente reducionista e não condiz com o apresentado no livro. Apenas para citar dois exemplos, e restritos às passagens do Vale, há um ex-trabalhador braçal que aprende para tornar-se um empreendedor, e os funcionários não contribuem da mesma forma, recebendo valores diferentes. Na hipótese apresentada, ou o indivíduo é empreendedor ou é trabalhador. Não li o restante da resenha para poder opinar sobre outros pontos.
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